Artigo: Uma Garota de Muita Sorte
Por Débora Pereira
1º out. 2023
Aflição de ser eu e não ser outra (…)
Aflição de não ser a grande ilha que te retém e não te desespera (…) Aflição de ser água em meio à terra E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel (…). ¹
Em face de ser si própria e não a outra que criou para sobreviver à realidade de seus traumas, Ani Fanelli parece aflita. Aflita em face de não ser, afinal, a mulher perfeita aos olhos de todos - exceto, claro, aos seus. Em face de sermos, todas, uma aflição de múltiplas faces, o filme “Uma garota de muita sorte”² permeia as aflições de tantas Anis - ou Tiffanys – que incessantemente se veem imóveis em um mundo que não nos da mobilidade.
Ani aparenta ter conquistado a vida dos sonhos, construído a carreira de sucesso, conquistado o noivo perfeito, o corpo perfeito, ser, enfim, a mulher perfeita. Mas ao acompanharmos a personagem (ou a nós mesmas?) vemos a nudez do passado, que parecia tão bem escondida, sob o manto, ainda que diáfano, da fantasia³ de irretocabilidade que parecemos criar para pertencer. Pertencer, que nas palavras lamentosas de Clarice, é sentir que nossa “força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa” ⁴. Engraçado, porém, ver que tal busca incessante de pertencimento, no enredo que assistimos – e vivemos, é unilateralmente empreendida. Ani quer pertencer, ser alguém para alguém. Mas há quem queira nos ser útil? Fortificar-nos?
Toda a vida de Ani, a partir do momento em que se entende como mulher, orientou-se pela busca da validação. Seu silêncio de anos perante a ascensão de seu violentador traduz a eterna luta empreendia – ou imposta? – à mulher que deseja ser vista, reconhecida, respeitada. Adjetivar uma mulher, como a própria personagem pontua, não parte de quem ela é, mas do que ela se mostra ser perante os outros, perante os homens. E, com o peso das palavras nunca ditas, quem sabe prestes a serem ditas 7, seguimos buscando nossa validade não naquilo que somos, mas naquilo que se espera que sejamos. E enquanto a lágrima que não chorou se prende ainda mais nas dores vividas e nunca ditas, aquele que, na adolescência, impetrou todos os traumas que costuram o futuro de Ani, ascende enquanto herói. Afinal, se são eles a terra, somos nós a água que flui seus caminhos a partir do terreno que nos é dado, nunca criando nossos cursos, mas sempre os encaixando nas valas que se postam a nossa frente. Validamo- nos sendo não nós mesmas, mas quem somos moldadas para ser. Perfeitas. Caladas. Sempre Ani. Nunca Tiffany.
Romper com a perfeição tem seu preço. O preço de ser sempre si mesma, mas nunca a mesma⁶. Ao decidir dar voz à Tiffany, o teto de vidro da vida perfeita de Ani se desmantela sobre suas feridas nunca cicatrizadas, apesar de perfeitamente escondidas. O noivo perfeito merecia a mulher perfeita. A carreira de sucesso merecia a mulher posturada. O nome de escritora renomada merecia a mulher calada. Tentando ser água nos trilhos da terra alheia, Ani se moldou, ou melhor, se criou. Inundando os caminhos pequenos demais para Tiffany, conhecemos verdadeiramente a mulher imperfeita, real. Ainda que o filme se encerre com uma aura de incompletude – sensação que parece acompanhar cada passo a frente que empreendemos - o sacrifício de não ser, ou pelo menos de tentar não ser, a mulher perfeitamente construída levanta, ainda que timidamente, um esforço de que se possa ver além⁷ da expectativa que tanto tentamos atender.
O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição⁸.
1. Uma garota de sorte. Mike Barker. Jessica Knoll. Netflix, 2022.
2. Hilst, Hilda. Aquela. De amor tenho vivido. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
3. Queiroz, Eça. Relíquia. Edição de bolso. Rio de Janeiro: BestBolso, 2016.
4. Lispector, Clarice. Pertencer. Caixa Todos. 1ª ed. São Paulo: Rocco, 2022.
5. Lispector, Clarice. Alma Luz. Caixa Todos. 1ª ed. São Paulo: Rocco, 2022.
6. Lispector, Clarice. Sou Sempre eu mesma. Caixa Todos. 1ª ed. São Paulo: Rocco, 2022.
7. Kaur, Rupi. Me levanto. Cura Pelas Palavras. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2023.
8. Lispector, Clarice. A perfeição. Caixa Todos. . 1ª ed. São Paulo: Rocco, 2022.