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NOMEAR PARA RESISTIR: A IMPORTÂNCIA DE RECONHECER O FEMINICÍDIO

Por  Bruna Castro
06 outubro. 2024

    Dentre as diversas formas e categorias em que a violência pode ser proferida, a feminicida simboliza a forma extrema de violência de gênero, valendo-se, sistematicamente, em discriminar a figura feminina "pura e simplesmente" por esta ser mulher.  Etimologicamente, Feminicídio configura-se como perseguição e assassinato intencional de pessoas do gênero feminino — independente da idade —, e também como forma extrema de misoginia. Ou seja, repulsa, desprezo e ódio às mulheres, ou a tudo que se encontre relacionado ao considerado socialmente como feminino. 

 

    Estudiosos do tema apontam que o termo se originou a partir da expressão "generocídio/genericídio", o qual significa o assassinato massivo de determinado gênero sexual. Nesse caso, essa forma de aversão às mulheres é centrada em uma visão sexista, impondo uma relação de subalternidade perante a figura do homem. 


    Lançando um olhar sobre a humanidade ao longo da história, infere-se que a simbologia da inferioridade feminina frente ao masculino está presente nos mais variados momentos e contextos, tanto por aquilo que se enuncia, quanto pelo que é silenciado socioculturalmente. De modo geral, as mulheres têm tido suas vivências nos espaços doméstico e público frequentemente marcadas pela humilhação e agressão, as quais se manifestam através da violência física (bem como tortura e mutilação), psicológica, patrimonial (ou ainda, econômica), sexual, simbólica, cibernética, obstétrica, moral, entre outras circunstâncias afins. 


    A parte mais cruel desse enredo é que muitas dessas experiências violentas são invisibilizadas, não sendo sequer reconhecidas para debate e enfrentamento... A morte é o fim de uma série de atos de anulação, violência e silenciamentos sofridos pela vítima; comumente cometidos por pessoas do círculo íntimo de convivência e, por isso, invisibilizados no contexto social. Sua voz — já cerceada anteriormente, de diferentes modos — não pode (mais) ser ouvida. E sua própria tragédia passa a ser discutida pela sociedade e instituições (muitas vezes, protagonizadas por homens), que não foram capazes de acolhê-la durante toda uma vida…


    No Brasil, em 2015, a então presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 13.104 conhecida como a Lei do Feminicídio. Trata-se de uma importante alteração no Código Penal (art. 121 do Decreto Lei nº 2.848/40), que inclui o feminicídio como uma modalidade de homicídio qualificado, de forma a integrar o rol dos crimes hediondos. Sabe-se que a pena do crime (reclusão que varia de doze a trinta anos) pode ser aumentada em um terço até a metade da sentença caso tenha sido praticado sob algumas condições agravantes, tais como: durante a gestação ou no período de puerpério; contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos, ou ainda, com deficiência; e na presença de descendente ou ascendente da vítima, segundo o Código Penal Brasileiro. 


    Esse tipo de assassinato, inclusive, pode ser classificado em três situações distintas. Feminicídio íntimo: quando há uma relação de afeto ou de parentesco entre os envolvidos ativa e passivamente no crime; não íntimo: quando não há tal relação entre a vítima e o agressor, mas o crime é caracterizado por haver violência ou abuso sexual; e por conexão: quando uma mulher que não era a vítima principal do caso, na tentativa de intervir, acaba, de fato, sendo morta no lugar da outra (mulher). 


    Apesar da legislação existir há pouco — menos de uma década — casos de feminicídio acontecem há muito mais tempo do que se possa imaginar. Um deles foi o assassinato da socialite mineira  ngela Diniz em 30 de dezembro de 1976 cometido pelo seu ex-companheiro Raul Fernando do Amaral Street, conhecido como Doca Street. O autor e réu confesso deu quatro tiros na mulher que passou a ser julgada pela própria morte, enquanto o verdadeiro criminoso ocupou o lugar de vítima. 


    Durante o primeiro julgamento do caso, a tese da defesa era de que Doca teria agido em “legítima defesa da honra” e “matado por amor”. Na época, militantes feministas se resolveram com a situação e organizaram o movimento “Quem Ama Não Mata”, expressão que posteriormente foi título de uma minissérie da TV Globo, em 1982. Anos depois, em 2003, o crime foi reconstituído no programa Linha Direta Justiça, com direito a exibição de diversas imagens de arquivo e depoimentos diversos.


    Recentemente, em 2020, a história foi recontada no podcast Praia dos Ossos, produzido pela Rádio Novelo, a partir de uma análise e investigação sobre os fatos que ocorreram até o momento do crime, bem como do (não) julgamento do assassino e consequente culpabilização da vítima. A produção conta com nove episódios, além de três (episódios) bônus contando histórias complementares ao fato central. Pouco tempo depois, em 2023, a cinebiografia intitulada “ ngela” retrata a vida e morte da mulher cujo assassinato chocou o país. O filme direciona a atenção ao relacionamento do ex-casal, mencionando somente ao final do longa os desdobramentos decorrentes em juízo, porém evidencia o abuso e a violência existentes na relação. 
   

    Passaram-se quase 50 anos do crime e destinos infelizes como o de  ngela continuam sendo traçados com o passar do tempo. De acordo com o Monitor de Feminicídios no Brasil da Universidade Estadual de Londrina (UEL), até o dia 31 do mês de agosto deste ano aproximadamente dois mil e setecentos (2.638) casos de feminicídios consumados ou tentados foram registrados em todo o território nacional. Até 31 de dezembro do ano passado, os dados apontam praticamente a mesma quantidade que finalizou o mês oito de 2024 (2.694). Ou seja, o número de casos vêm aumentando nos últimos meses, seja pelo aumento da violência propriamente, ou ainda pelo maior quantitativo de denúncias realizadas. 


     Logo, infere-se que nomear como Feminicídio o assassinato de mulheres pela sua condição de gênero se faz importante. Uma vez que, simbolicamente, ao darmos um nome a essa forma de violência nos posicionamos contra o silenciamento histórico de agressões e subalternidade compulsórias. De tal maneira, para além de uma mera formalidade legal, reconhece-se que esse é somente mais um passo no longo caminho que temos em busca do pleno respeito e da equidade de gênero. 
 

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