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COMO A  "SALVAÇÃO" DAS MULHERES ISLÂMICAS POR MEIO DO FEMINISMO OCIDENTAL CONTRIBUI COMO MECANISMO DE OPRESSÃO

Por  Mariê Machado Sales
13 maio. 2023

Sabemos que o feminismo é um movimento político que luta pela equidade de gênero em oposição às formas de violência contra as mulheres. Contudo, a visão que temos de feminismo foi estruturado a partir de movimentos ocidentais e, predominantemente, de mulheres brancas. É inegável que as ondas feministas contribuíram para os direitos e o contexto no qual as mulheres hoje ocupam, como o mercado de trabalho, espaços políticos, inovações e pesquisas científicas, além de outras demandas, como direitos reprodutivos e a maior liberdade de se expressar como mulher. Mas também é indiscutível que a representatividade não integra todas as mulheres, nem todas as suas lutas.
Nesse sentido, o presente texto propõe discutir acerca da violência simbólica que o feminismo ocidental contribui para grupos não participantes desse cenário, sobretudo, as mulheres islâmicas. Nós, ocidentais, temos a ideia de que todas as islâmicas são oprimidas, que não possuem a liberdade de portar outras vestimentas além do hijab, e que precisam ser salvas. Essa idealização de salvação te lembra alguma coisa? Esse é um pensamento colonizador, patriarcal e representa um machismo enraizado. Afinal, como podemos entender e falar sobre algo que não fazemos parte e sequer temos uma educação, institucional ou não, da pluralidade da luta das islâmicas?
Desse modo, não podemos determinar o que é um ato político para nós, se ele não é de fato para nós. A questão das mulheres islâmicas vai muito além de um acessório e o seu uso. Para começar, o hijab – o véu utilizado por essas mulheres – não é apenas uma vestimenta, mas faz parte de sua cultura e religião, a qual também é uma forma de disputa. Assim, entramos em um outro ponto: além do machismo, temos a intolerância religiosa. O hijab é usado como uma forma de devoção a Allah, nome que representa Deus na religião muçulmana, sendo o traje uma atitude modesta em relação ao respeito e exercício da religião.
A diferença da roupa está conectada ao sentimento de pertencimento religioso, sendo, portanto, o seu uso ligado a uma lei divina, e não uma lei instituída por homens. Ademais, o não uso do hijab não faz uma mulher muçulmana menos devota do que a que o veste. Dessa maneira, o machismo cultural assume a leitura de que um homem qualquer tem o poder de determinar e obrigar a mulher a se cobrir com a vestimenta, interpretação a qual provoca olhares negativos às muçulmanas, não só por mulheres ocidentais, mas principalmente, pois estão aprisionadas em uma concepção arraigada pelo machismo, opressão e obrigação.
Assim, fica evidente que o feminismo e a religião são dois termos em debate. O que nos leva ao questionamento: o feminismo islâmico existe? Deve-se ressaltar que a expressão “feminismo” foi instaurada por mulheres ocidentais, e “feminismo islâmico” é uma sentença atribuída por feministas ocidentais para nomear as mulheres muçulmanas que lutam por suas demandas. Essa designação traz muitos estigmas e estereótipos para as muçulmanas, de forma que contribui para uma visão de que existe apenas um feminismo e somente uma luta, quando, na verdade, “feminismo islâmico” não é uma vertente islã, e as mulheres desse grupo não se denominam dessa forma. Podemos dizer, aqui no Brasil, que a luta de todas as nossas mulheres são as mesmas? Nossas reivindicações são divergentes, da mesma maneira que uma mulher iraniana não tem as mesmas exigências que uma marroquina, que também não tem as mesmas demandas que uma mulher árabe-saudita. Há a existência de várias lutas de diferentes mulheres islâmicas, e reduzir todas elas a uma denominação é diminuir essas reivindicações.
Assim, como Lila Abu-Lughod discute em “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre relativismo cultural e seus Outros” (2012), a salvação que as mulheres ocidentais desejam para as orientais provoca a maior violência cultural ao não aceitar as ideias diferentes em relação ao que as muçulmanas desejam, ao que querem escolher e às suas vontades dentro de sua própria cultura, religião e identidade, além de impor a essas mulheres que “precisam ser salvas”, costumes os quais as ocidentais não consideram pertinente a elas, entretanto, os costumes realmente não são delas.
É profundamente problemático construir a mulher afegã como alguém que precisa de salvação. Quando se salva alguém, assume-se que a pessoa está sendo salva de alguma coisa. Você também a está salvando para alguma coisa. Que violências estão associadas a essa transformação e quais presunções estão sendo feitas sobre a superioridade daquilo para o qual você a está salvando? Projetos de salvar outras mulheres dependem de, e reforçam, um senso de superioridade por parte dos ocidentais, uma forma de arrogância que merece ser desafiada. Tudo o que se precisa fazer para vislumbrar a qualidade condescendente da retórica de salvar mulheres é imaginar utilizá-la hoje nos Estados Unidos em relação a grupos em desvantagem, como mulheres afro-americanas ou mulheres proletárias. Nós agora entendemos que elas sofrem uma violência estrutural. Tornamo-nos politizados acerca de raça e de classe social, mas não em relação à cultura. (ABU-LUGHOD, 2012, p. 465).
Portanto, assumir estereótipos e reduzir a luta de mulheres muçulmanas a uma vestimenta de símbolo cultural e religioso é opressivo, assim como denominá-las por um termo do qual elas não se identificam também é violento. Nós precisamos nos educar e ensinar outras pessoas, além de respeitar e escutar as mulheres de outras culturas e religiões, só assim seremos coerentes com as nossas falas e com a nossa solidariedade. É um exercício antropológico importante e essencial para refletir sobre a amplitude das lutas por mulheres, que englobam não só suas roupas, mas práticas religiosas, casamento, mercado de trabalho e outros aspectos que fazem parte das reivindicações diárias de cada uma de nós.
Nós vemos muitas discussões sobre local de fala, mas não exercemos nosso local de escuta. Não podemos promover o discurso sobre a importância da representatividade no local de fala se não nos colocamos em posição de escuta e aprendizado. Como compreender e contestar algo que nós não só não conhecemos, mas não vivemos?
 
Referências usadas:
ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros Estudos Feministas, v. 104, n. 3, p. 451-470, 2012
https://open.spotify.com/episode/0Q9BLJYyozpcixpWhNlaKe?si=086a50e41eb149bc

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